O complexo de avestruz Ou a grata sabedoria de estar consigo mesmo
Publicado por SPRGS em Voz da Sociedade · Terça 14 Abr 2020
Voz da Sociedade
O complexo de avestruz
Ou a grata sabedoria de estar consigo mesmo
Estevan de Negreiros
Ketzer*
“γνῶθι
σεαυτόν” /gnote theauton/ escrito no Oráculo de Delphos, significa simplesmente
“conhece-te a ti mesmo”. Perturbador que algumas palavras ainda sejam
tão cercadas de mistério e tão incompreendidas na história ocidental como esta.
Agora, neste momento de desespero humano, epidemia traumática, pungente e,
talvez, incontornável, em que nossos ideais foram desfeitos, a violência
polarizada age contra nós. Teríamos nos perdido em nos adentrarmos em busca de
nossas origens mais idiossincráticas?
Ainda que se possa dizer que um adolescente possui
preocupações hormonais mais correntes que o princípio de realidade imposto à
sociedade, não deixa de ser alarmante a produção em série de adolescentes
atemporais: desinformação, insensibilidade ao que está fora do outro,
emotividade instantânea e, não menos importante, vitimismo. E assim foi feito
para que muito rapidamente também pudessem calar aqueles que buscam uma outra
forma de educação, com mais rigor do que intensidade, mais vontade e autonomia
do que entregar-se à fórmulas matemáticas desprovidas de experiência.
Na
intelecção quase nunca temos estados de êxtase ou graça. Contudo, ali mora uma
complexa reflexão anódina de uma pedra capaz de pensar a si mesmo, não com
certezas, mas repleto de dúvidas. E sobreviver à dúvida não parece fácil. É
nisto que se conjuga a falta de sabor com a explosão que a mídia e os intelectuais
propõe um novo tipo de culto, desta vez completamente destituído de Deus.
Cultua-se a matéria, mas o faz da seguinte forma: um aprendizado sobre a luta
de classes que perpassa a história e o quanto a pessoa é culpada por ter
privilégios; aprender a expiar esta culpa ao poder registrar sua revolta em
manifestações populares com discursos de justiça e igualdade social; também
lutar contra o vilão “fascista”, ou seja, qualquer um que ouse pensar outras
maneiras de olhar o social sem utilizar-se de slogans marxistas ou
construtivistas; e finalmente, Amém.
Este mecanismo cultural que emocionalmente nos afeta, para tentar encontrar uma
resposta ao atraso civilizacional em que vivemos. Como se a classe média que
trabalha neste país fosse equivalente aos grandes capitalistas, ou players, internacionais fosse um
atestado de alienação e, portanto, um crime em de proporção inexpugnável. Aqui,
em nossa sociedade de milicianos e coronéis, onde esse sistema continua atuando
de forma desenfreada, qualquer um que se assuma contrário a essa lógica está
apenas repetindo o que todos já sabem, ainda que todos já tenham perdido a
esperança. Esperança em quê? Se o sistema é falido, se governo após governo
tudo é a mesma coisa e os poderosos continuam no poder? E de forma surpreendente
também nos deixamos guiar pelos instintos primitivos para ler coisas escritas
com tamanha superficialidade. Nos tornamos assim sub-produtod regidos por
analfabetos funcionais com diploma superior. Sim, porque o Brasil é muito
fordista quando se trata de criar massas pseudo-intelectuais que trabalham para
uma mesma máfia de burocratas arrogantes que se associaram contra a sociedade
civil utilizando-se do aparelho de Estado.
Simplesmente, tal como uma avestruz que esconde a cabeça
embaixo da terra para que assim não se depare com a realidade e tenha de se
conflituar com o medo de não ter uma resposta. E por esta razão olhar para
aquilo do nosso passado primordial, da experiência de um menino com um lápis na
mão, observando atentamente um quadro negro e um professor falando alguma coisa. Me volto para estes momentos em
que o professor falava e eu sem entender que o professor não entendia também o
que ele estava a me passar. Seria isso possível? Seria dessa forma mesmo? Seria
então o professor também uma avestruz assim como eu e muitos outros nos
tornamos? Se somos avestruz porque não vem ninguém para nos ajudar a olhar e
crescer?
A avestruz chegou e minha mão ficou presa. Naquela hora
precisa a educação acabou e não voltaria a nascer por muitos anos uma vontade
de aprender de modo genuíno. Pois só quando “conhece-te a ti mesmo” nasceu como
berço da tradição e cultura é que podemos nos aproximar do que é
“inteligência”, do latim, “o intelecto apreende o ser como verdade”. E se temos
um ser ele também deve ser preservado na sua especificidade que me escapa se
distorço intelectivamente o que ela se mostra na sua leitura que nossos
sentidos fazem. Esta fato também entra na distorção cognitiva do analfabetismo
funcional, pois a dificuldade de chegar ao objeto real nos fecha sobre
ideologias protetoras. E trair os sentidos nos coloca diante do quê? Curioso
que nem todas as coisas que vemos, escutamos ou sentimos nos encantam mais. E
triste que não haja uma grande obra literária desde de Clarice Lispector. As coisas
já não são nem belas e nem boas. Não podem ser livres para serem elas mesmas
com medo de não estarem adequados à grande massa da maioria e sua voz
cerceadora. Tão pouco valorizar a
família ou o amor genuíno a outra pessoa. Esse mundo que se torna triste porque
é incapaz de investir em uma beleza autêntica, não como ideal, mas como prática
diária e necessária à riqueza da vida e permanência de um lastro social maduro
que agregue a humanidade.
*Sócio efetivo e coordenador do Comitê Psicologia e Cultura da SPRGS