Psicanálise On-line. É possível com as crianças?

Ir para o conteúdo

Psicanálise On-line. É possível com as crianças?

SPRGS
Publicado por SPRGS em Voz da Sociedade · Terça 05 Mai 2020
Voz da Sociedade
Psicanálise On-line. É possível com as crianças?
(Fernanda Dornelles Hoff)*
Passados alguns dias do início do necessário isolamento social, na busca de controlar a pandemia de COVID-19, sinto-me convocada a fazer algumas reflexões acerca da Psicanálise com Crianças. O modo imediato como necessitamos nos afastar do consultório, impôs escolhas nada fáceis a nós, psicanalistas. Com muita cautela costumamos avisar com antecedência os pacientes quando não atenderemos, por exemplo, ao tirarmos férias, examinando sempre seus efeitos. Frente à realidade que se impôs, tivemos pouco tempo e tínhamos duas opções: interromper os tratamentos ou propor aos pacientes o atendimento on-line, escolha que precisou ser avaliada a cada dupla.

Com as crianças, tal momento ocorreu de diferentes modos, sendo que com algumas, pudemos refazer combinações sobre o período que estava por vir, mas com outras não conseguimos ter um último encontro presencial. Os pais ou responsáveis, diante das notícias de pandemia e das orientações de isolamento, não levaram mais as crianças ao tratamento, movimento lógico, frente à ameaça à preservação da vida. Do lugar de analistas, fomos reduzindo os atendimentos conforme o movimento dos pacientes e do contexto a nossa volta, até que recebemos a orientação de não mais atender presencialmente.

A partir dessa definição foi validado legalmente o atendimento de crianças on-line, com o consentimento dos pais. No entanto, precisamos nos perguntar que implicações tem o uso de ferramentas digitais para o atendimento a uma criança, e em que situações seriam indicadas. Um dos caminhos a percorrer, é refletirmos sobre quais crianças teriam o estatuto e a estrutura psíquica para dar conta do espaço digital. Obviamente, não podemos nos balizar pelas habilidades destas ao manusearem aplicativos em tablets, notebooks ou smartphones. Muitos bebês estão em contato com estes eletrônicos, o que tem sido tema de muitas de nossas discussões. O uso indiscriminado da internet tem promovido diversas manifestações sintomáticas, fenômeno este nomeado por alguns autores como “intoxicações eletrônicas”. Há estudos afirmando que na primeira infância nenhuma mídia digital deveria ser oferecida às crianças. Utopia ou não, importante pensarmos à que justificativa se deve essa afirmação.

Caso a estrutura psíquica da criança ainda se encontre num tempo subjetivo em que as satisfações da pulsão são ligadas ao autoerotismo e as identificações primordiais tomando a cena na estruturação do sujeito, o uso das mídias digitais e da virtualidade tornam-se complicadores.  Se o descolamento eu-outro ainda não se deu por completo, os personagens e símbolos poderão substituir o outro como uma mimese, uma cópia.  Dominar o campo virtual implica na necessidade de dissociar-se do corpo real, portanto, a apropriação do eu enquanto estrutura simbólica precisa estar organizada. Um exemplo disso é a criança pequena que ao ver a avó na tela do smartphone vira o aparelho para ver se ela está atrás deste. Nesse período, é importante que a mãe ou o pai acompanhe tal encontro, dizendo que aquela é a vovó, que ela está em sua casa, e que sua voz e imagem é que estão ali. A presença de quem cuida fará com que a criança possa aos poucos construir o deslocamento espacial e o simbolismo que a imagem contém. Podemos pensar então, que quanto menor a criança, maior será a necessidade da presença dos pais se a opção for um atendimento on-line.

Sílvia Bleichmar reforça que toda escolha de um movimento técnico precisa estar balizado por uma concepção do funcionamento psíquico. Portanto, a posição subjetiva em que a criança se encontra, deve sempre ser considerada. Bleichmar nos diz: “A indicação de uma análise é de responsabilidade do analista, e não se sustenta pura e simplesmente na demanda do paciente, senão nos pré-requisitos metapsicológicos que guiam a indicação adequada”.

Com a exigência de outras formas de encontro aos processos de análise, como o uso de recursos tecnológicos, os requisitos metapsicológicos precisam ser trabalhados para que, de modo responsável, possamos acolher necessidades de continuidade do tratamento das crianças nesse momento traumático, avaliando as modificações na técnica.

Então, precisamos examinar as demandas dos pacientes e de seus pais, refletindo à luz da teoria. O que se faz presente é a angústia que surge a partir da nova realidade com o recolhimento de todos em casa, especialmente dos pais frente às incertezas desse momento. Muitos sem trabalho ou o realizando de casa e as dificuldades financeiras apontando, somando-se ao medo frente ao risco de contrair um vírus que pode ser letal. Lutos precisam ser feitos da vida cotidiana, para que seja criada uma nova rotina, quando as crianças também estão sem ir à escola, sem ver os amigos, primos, tios e avós. A angústia a partir dos excessos desse momento tem promovido, em muitos, efeitos desorganizadores. Nesse contexto, os sintomas podem se intensificar. Sintomas que denotam grande desorganização interna nas situações em que o sujeito está buscando a integração do seu eu, sintomas fóbicos e obsessivos no caso das estruturas neuróticas e, no caso das psicoses, a paranoia ou a depressão. Também podemos imaginar os efeitos desse momento nos autistas que possuem dificuldade de reconhecer o outro e seu cuidado, sendo toda a aproximação um excesso.

Portanto, temos muito a trabalhar, partindo especialmente da intersubjetividade, reconstruindo num primeiro momento, um setting que possibilite a escuta em encontros on-line, combinações das quais os pais devem sempre participar. São contratos novos e provisórios que deverão ser organizados e que podem ocorrer em sessões conjuntas, pais e filho ou filha, sessões somente com o pai, a mãe ou ambos, e sessões só com a criança. Consideramos serem importantes nesse momento, intervenções que possam ser pontuais, especialmente com os cuidadores, mas sem nos colocarmos numa posição de orientadores dizendo o que deve ser feito. Ao psicanalista, cabe a escuta do inconsciente. Pode ser uma opção, a realização de uma sessão em que os pais possam processar o que o momento promove em suas fantasias, elaborando-as para que sejam referência na reorganização da vida dos filhos. Ainda, a escuta dos pais pode possibilitar uma maior elaboração dos movimentos sintomáticos de um filho ou filha, ao estarem todos tão perto.

Além disso, em alguns casos a continuidade do processo de análise individual da criança poderá ocorrer on-line. Conforme reflexão acima, seria indicada àqueles pacientes em que o domínio do simbólico já ocorre, sendo que as barreiras do recalque e das satisfações das pulsões parciais estejam num processo em que a sublimação entre em cena. Assim, o lúdico através da palavra, brincadeira ou produção gráfica, possa se fazer presente através da troca on-line entre paciente e analista. Em tais processos, a mediação dos seus pais é fundamental, estando esses responsabilizados pela organização do setting em casa, possibilitando a privacidade da criança e o sigilo, diferente do que ocorre no consultório onde cabe ao analista tal estrutura. Tal movimento, precisa ser combinado em conjunto, como fazemos nos encontros avaliativos no início dos tratamentos, por estarmos diante da necessidade de recontratar.

Então, se entendermos quais são os limites desse modo de trabalhar, poderemos também ampliar as possibilidades de tais experiências levando a nossa escuta abstinente ao setting virtual.  O momento nos convoca a contribuir para que o sujeito que se constitui tenha maiores condições de qualificar o que o invade desde o exterior, fazendo eco em seu interior, o que é singular. Ser psicanalista nessa hora em que o traumático se faz presente, exige desacomodar o modo de intervir, fazendo trabalhar os conceitos que fundamentam o método utilizado. A psicanálise justamente por não ser um método fechado, possibilita que, ao invés da paralisia, possamos optar pela criatividade! Amparar pais e crianças nesse momento, através da escuta, nos põe à frente na direção da vida e contra  essa guerra - Covid -19-  pandemia que acomete o mundo.

Ao responder uma carta a Einstein em 1932, Freud diz :“...tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.”

*Sócia efetiva.





Sprgs
Rua Felipe Neri, 414 conj 202 Auxiliadora
90440-150 Porto Alegre RS

51.3331-8586
WhatsApp: 51.99527-3920

Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul
Voltar para o conteúdo